CANÇÃO DA RUA DESERTA


Na viela anoiteceu rapidamente
Aquele rancho de crianças
Que brincavam - eram oito!
Sumiu-se... já não as vejo.
E não as oiço cantar
O giro-flé-giró-flá
Giro-flé da beira-mar.

Tão lindas! Tão pobrezinhas!
-Ó Diolinda!, Miguel!~
Ó Clementina!, Luzia!
Então o jantar?
Não ouvem?Tu não ouves, Lionel?,
Gritam as mães.
E a petizada
Numa corrida ligeira
Põe um fim na brincadeira...

Um silêncio perturbado
Pelo clarão momentâneo
De uma luz numa janela
Alastra e brilha amarelado,
Trémulo, fraco, indeciso...
Uma guitarra diz coisas
Na voz eterna do fado

-É o Chico do "Benfica"Que mora no 27
Da Rua do Paraíso.
Quando sai da oficina
E enquanto a mãe - a velhota,
Lhe prepara a paparoca,
Pega na banza e vai disto:

Afirmam que a vida é breve
Engano, a vida é comprida:
Cabe nela amor eterno
E ainda sobeja vida.

- O jantar está na mesa;
Deixa a sanfona, meu filho,
Olha que a sopa arrefece.
Diz-lhe a mãe, enternecida.
E o Chico senta-se à mesa
Indo arrumar com jeitinho
O "pianinho" da tristeza.

- Não falas?
Temos tragédia?
Mas o Chico não responde;
E mal acaba o jantar,
Vai-se deitar, sorrateiro...
E a mãe deita-se também
Depois de lavar os pratos
E de "abaixar " a torcida
No seu velho candeeiro...

Na viela a noite cai
Soturnamente cansada...
Ninguém passa, ninguém vem,
Ninguém se vê, ninguém sai...
Sombra, silêncio - mais nada!

Na baiuca da Celeste
O marido, - um entrevado,
Olha a mulher e os dois filhos
Numa expressão de abandono.
O mais pequeno adormece
Ao pé da mãe, e o mais velho
Que tem dez anos, também
Está cheinho de sono.

Comeram sardinhas fritas
E beberam água-pé;
Mas a mãe - pra rebater
Bebe um pouco de café.

Um som baço de cantiga
Paira e sobe diluído
No silêncio da viela...
No céu não brilha uma estrela

O guarda nocturno passa
E passa a mão com violência
P'la porta do carvoeiro.
Tilintam as chaves.
Palmas...

- Lá vai!
É o Zé Fragateiro
Pelo bater da mãozada.
E a noite cai -
e o silêncio...
Só o silêncio, mais nada...

A roupa do marinheiro
Não é lavada no rio;
É lavada n o mar alto
À sombra do seu navio.

- Ena!, saíu-se a Rosário!
Coitada, embala o miúdo

Um petiz de quinze meses,
E canta a pensar no pai
O seu amado Guilherme
Que é fogueiro no "Gil Eanes".

E a noite cai mais sombria;
Não há rumor de ninguém...
E tarda a romper o dia!

ANTÓNIO BOTTO
Tenho guardado, religiosamente um disco em vinil com este poema dito pelo João Villaret. É uma pérola rara. Linda Linda. Pena não conseguir meter aqui som.

Nenhum comentário: